Flávio Tartuce e Maurício Bunazar
Em nosso último texto, publicado neste canal, começamos a estudar os problemas de invalidade das chamadas “holdings familiares”, sobretudo no modelo que tem sido efetivado no Brasil, que busca efetivar o total esvaziamento patrimonial dos bens dos membros da família por meio de sua destinação para essas pessoas jurídicas.
Naquele trabalho inicial foram destacados dois problemas de invalidade na constituição dessas pessoas jurídicas, ambos dizendo respeito à violação de normas cogentes ou de ordem pública e que, por isso, são causas de nulidade absoluta, a mais grave das invalidades.
O primeiro problema – e talvez o mais grave de todos, em nossa visão compartilhada – é o de que a constituição dessas sociedades patrimoniais pode configurar negócio jurídico indireto voltado à fraude a leis imperativas, a gerar a sua nulidade (art. 166, VI, do Código Civil). O segundo problema jurídico está associado à presença de simulação, vício social do negócio jurídico que, pelo vigente Código Civil, ocasiona igualmente a nulidade absoluta do negócio jurídico (art. 167).
No presente texto, o segundo da série que pretendemos desenvolver, é analisado outro sério problema de invalidade que geralmente atinge as “holdings familiares” de esvaziamento patrimonial: o desvio de finalidade ou utilização disfuncional da personalidade jurídica.
Como é notório, embora haja um sem-número de teorias que buscam desvendar a natureza da personalidade da pessoa jurídica, prevalece, atualmente, a que a enxerga como realidade técnica, pondo em relevo seu caráter essencialmente instrumental. É esse caráter instrumental que, de modo radical, diferencia a pessoa jurídica da pessoa humana. Jorge Manuel Coutinho de Abreu, professor da Faculdade de Direito de Coimbra, faz notar que as pessoas jurídicas, por não contarem com a carga ético-axiológica típica da pessoa humana, podem ter a sua personalidade estendida, limitada ou fracionada (Curso de direito comercial. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2019. v. 2. p. 163).
Em um esforço de síntese e clareza, pode-se apontar algo que, embora óbvio, não foi ainda levado às últimas consequências em nossa realidade jurídica: a personalidade da pessoa jurídica, sendo mero instrumento, só pode ser analisada, seja do ponto de vista teórico, seja na solução de problemas jurídicos concretos, funcionalmente. Isso implica que a tutela da personalidade jurídica sempre deverá ser precedida de um juízo consistente em determinar, in casu, se os fins perseguidos são lícitos e quem é titular imediato dos interesses em jogo.
Em se constatando a ilicitude dos fins ou que – exceção feita atualmente à sociedade limitada unipessoal -, os interesses perseguidos são imediatamente os dos sócios da pessoa jurídica, a personalidade deverá sofrer as derrogações necessárias para corrigir a sua utilização disfuncional. O mecanismo predisposto pelo direito positivo para a correção de desvios funcionais da personalidade jurídica é o da sua desconsideração, nos termos do art. 50 do Código Civil e de outros diplomas específicos, caso do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor e do art. 4º da lei 9.605/1998 -, em se tratando de danos ambientais -, por exemplo.
Talvez pelo fato de os desvios funcionais da personalidade jurídica muitas vezes se caracterizarem pela fraude lato sensu a credores, generalizou-se a chamada desconsideração para fins de responsabilidade, pela qual, por dívidas da sociedade, respondem os sócios. Não obstante essa seja a realidade jurídica em nosso País, há a chamada desconsideração atributiva ou para fins de imputação. A distinção entre desconsideração para fins de responsabilidade e para fins de atribuição deve-se, fundamentalmente, a Rolf Serick (Rechtsform und Realität juristischer Personen) e a Wolfram Müller-Freienfels (Zur Lehre vom sogenannten Durchgriff bei juristischen Personen im Privatrecht).
Serick, tido como o primeiro doutrinador a tratar sistematicamente da desconsideração da personalidade jurídica, teve sua obra submetida a uma resenha crítica por Müller-Freienfels, que, por ocasião dessa recensão, apontou a parcial insuficiência do modelo anterior. Sobre o último autor e sua visão, ensina Calixto Salomão Filho:
“Afirma que o esquema regra/exceção de Serick erra ao ver na personificação jurídica e, consequentemente, no seu contrário, a desconsideração, um fenômeno unitário. Para ele, respeitar ou não a separação patrimonial depende da análise da situação concreta e da verificação do objetivo do legislador ao impor uma determinada disciplina. Esse posicionamento permite uma visão menos rígida da desconsideração, que passa a incluir não apenas situações de fraude, mas também, quando necessário, situações em que, à luz da importância e do objetivo da norma aplicável, é conveniente não levar em conta a personalidade jurídica. A desconsideração não é, portanto, apenas uma reação a comportamentos fraudulentos, mas também uma técnica legislativa ou uma técnica de aplicação das normas (Regelungstechnik) que permite dar valor diferenciado aos diversos conjuntos normativos” (O novo direito societário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 364).
A teoria da desconsideração para fins de imputação, atualmente dominante na Alemanha, permite que se analisem as características reais da pessoa jurídica em questão, funcionando como mecanismo eficiente de combate à fraude à lei, à simulação e a negócios jurídicos indiretos ilícitos, exatamente como desenvolvemos em nosso texto anterior. Embora já fosse aceita pela doutrina brasileira, a desconsideração para fins de imputação ganhou enorme relevo pelas alterações no Código Civil promovidas pela Lei n. 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica).
Dois dispositivos merecem destaque, quais sejam o parágrafo único do art. 49-A e o § 1o do art. 50, ambos do Código Civil. Quanto ao primeiro, lê-se o seguinte:
“Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores.
Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todo”.
Observa-se, portanto, que o parágrafo único do art. 49-A, ao mesmo tempo que sublinha o caráter instrumental da personalidade jurídica, explicita as finalidades a serem perseguidas, licitamente, por meio do instrumento pessoa jurídica. É evidente que, a contrario sensu, a busca por finalidades ilícitas deturpa a razão de ser da personalidade jurídica, autorizando a sua desconsideração.
Ora, ao se cotejar o disposto no parágrafo único do art. 49-A com a realidade das “holdings familiares” voltadas ao esvaziamento patrimonial total, observa-se, em regra, que: a) essas pessoas jurídicas constituídas, sobretudo as sociedades, não exercem atividade empresária de nenhum tipo; b) essas pessoas jurídicas não estimulam nenhum tipo de empreendimento; c) elas não geram emprego, sendo certo que as pessoas físicas que eventualmente estão em sua folha de pagamento, quando muito, prestam serviços exclusivamente às sociedades operacionais cujas cotas elas detêm; d) não geram tributação e, muito ao contrário, são usadas também para elidir tributos ou mesmo para fraudes fiscais; e) não geram renda; f) as “holdings familiares” não têm sequer o potencial de gerar inovação; e g) essas pessoas jurídicas sequer celebram contratos, não tendo credores e nem devedores.
Em complemento, nota-se que o Código Civil, no parágrafo único do art. 982, dispõe que as sociedades por ações, independentemente do objeto, são sociedades empresárias. Sociedade empresária, por expressa determinação legal, é aquela que exerce empresa, isto é, exerce atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, conforme a literalidade do art. 966 do Código Civil. Na grande maioria das situações as “holdings familiares” não exercem empresa; não realizam nenhuma atividade econômica, muito menos atividade econômica voltada para o mercado e para o crescimento econômico do País. Tem-se em verdade, uma “pessoa jurídica casca de ovo”, sem conteúdo, oca, sem função ou finalidade que lhe possa ser atribuída.
Essas constatações são mais do que suficientes para demonstrar que a autonomia dessas pessoas jurídicas não encontra justificativas legítimas à luz do direito positivo brasileiro. Também a redação do § 1º do art. 50 claramente revela a admissão e a utilidade da desconsideração atributiva no direito pátrio. O dispositivo preceitua que, “para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza”.
Tradicionalmente, o desvio de finalidade caracterizava-se pelo exercício de atividade estranha ao objeto social. Porém, com a redação dada pela Lei da Liberdade Econômica, a noção de desvio de finalidade passou a incluir expressamente a lesão a credores e a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. Ao contemplar a possibilidade de a prática de atos ilícitos ensejar a caracterização de desvio de finalidade passou a ser juridicamente possível, consequentemente, a desconsideração da personalidade jurídica independentemente da lesão a credores.
Nesse contexto, entendemos que a nova redação do art. 50 do Código Civil passou a autorizar a desconsideração atributiva, que tem como uma de suas principais vantagens afastar a fraude à lei sem que seja necessário recorrer a subjetivismos caracterizados pela ideia de intenção. Nas palavras de Lamartine Corrêa, “mostra Müller-Freienfels [criador da teoria da desconsideração atributiva] que a orientação subjetiva com que Serick encara o problema do abuso, exigindo que se trate de abuso desejado e consciente encontra paralelo na sua adoção de uma visão também subjetivista da fraude à lei, que exige, para que se possa falar de fraude à lei, a presença comprovada da intenção de elidir a incidência da norma de lei, ou seja, a prova do elemento subjetivo da intenção. Em face desse problema, pondera Müller-Freienfels, ganha cada vez mais terreno na Alemanha (mas também em outros países) a teoria objetiva da fraude à lei” (A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 363-364). O jurista tem total razão, em nosso entender.
No Brasil, a doutrina mais abalizada nega peremptoriamente a necessidade de intencionalidade para a caracterização da fraude à lei. Pontes de Miranda, por exemplo, ensina que, “se se usa ‘fraude à lei’, tem-se de abstrair da intencionalidade. Não há por onde se procurar o intuitus; basta a infração mesma” (Tratado de direito privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970. t. I. p. 43). Exatamente no mesmo sentido são as lições de Marcos Bernardes de Mello, a quem rendemos as melhores homenagens (Teoria do fato jurídico: plano da validade. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 98).
A análise do cenário fático das “holdings familiares” voltadas à prática das mais diversas fraudes é suficiente para demonstrar que elas não são sociedades empresárias de fato. São, na verdade, expedientes de desvio de finalidade utilizados pelos sócios pessoas físicas para o implemento de arranjos visando ao esvaziamento do patrimônio dos seus membros, fraudando leis imperativas, exatamente na linha do primeiro problema de invalidade que destacamos em nosso artigo anterior. Caracterizada a violação antecedente de normas cogentes, justifica-se, assim e mais uma vez, a nulidade absoluta de sua constituição, consoante o art. 166, VI, do Código Civil.
É de se apontar que as razões que impõem ao legislador um sistema especial de invalidades em se tratando de pessoas jurídicas não se justificam quando se está diante dessas “holdings familiares” fraudulentas. Isso porque elas não se relacionam com terceiros, tampouco sua preservação atende à função social, na medida em que, como apontamos, nada produzem, não empregam e não geram tributos. Assim, deve ser aplicado o sistema geral de invalidades, previsto na Parte Geral do Código Civil.
Como última nota, verifica-se que a tese que aqui desenvolvemos serve para completar o argumento da presença da simulação relativa objetiva, como foi desenvolvido em nosso texto anterior. Nos termos do caput do art. 167 do Código Civil, é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.
Dessa maneira, percebem-se na simulação relativa dois negócios: um aparente (simulado) e um escondido (dissimulado). Eventualmente, esse negócio camuflado pode ser tido como válido, justamente no caso de simulação relativa, se tiver os mínimos requisitos de validade. Todavia, no caso das “holdings familiares”, essa validade do negócio dissimulado não é caminho jurídico possível. Segundo o Enunciado n. 153, aprovado na III Jornada de Direito Civil, em 2004, “na simulação relativa, o negócio simulado (aparente) é nulo, mas o dissimulado será válido se não ofender a lei nem causar prejuízo a terceiros”. Completando, na IV Jornada de Direito Civil, de 2006, aprovou-se o Enunciado n. 293, pelo qual, “na simulação relativa, o aproveitamento do negócio jurídico dissimulado não decorre tão somente do afastamento do negócio jurídico simulado, mas do necessário preenchimento de todos os requisitos substanciais e formais de validade daquele”.
Como já ficou claro, não é possível aproveitar o negócio dissimulado no caso das simulações intentadas pelas “holdings familiares”, pois há também ofensa à lei e, muitas vezes, prejuízo a terceiros, exatamente como desenvolvemos neste texto. Não raro, os negócios jurídicos são praticados sob as “holdings familiares” justamente para escaparem do regime jurídico do direito comum, por exemplo, da necessidade de obtenção de outorga conjugal para certos atos e da existência de hipóteses de nulidade que podem ser alegadas a qualquer tempo. No entanto, além disso, muitas vezes os negócios jurídicos praticados sob as “holdings familiares” são eles mesmos simulados, seja por atribuírem direitos a pessoas diversas das que realmente estão a transmitir, seja por declararem valores patrimoniais diferentes dos reais, seja por qualificarem doações como compras e vendas e compras e vendas como doações, entre outras condenáveis situações, que o Direito não pode admitir.
Mais uma vez, nota-se que relevantes são as razões para se considerar nula a constituição de uma “holding familiar” de esvaziamento total patrimonial, sendo certo que, para nós, esses argumentos são, novamente, insuperáveis. Mas não é só; existem outros problemas de invalidade, que pretendemos abordar em nosso próximo artigo desta série.
Leia o original aqui.