Artigo: reforma do Código Civil – pactos sucessórios


Confira a seguir o artigo escrito por Maurício Bunazar sobre os pactos sucessórios, elaborado, inicialmente, para disponibilização junto à plataforma Migalhas. Confira o original em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/400223/pacto-sucessorio-e-a-reforma-do-codigo-civil

 

Como amplamente divulgado, a presidência do Senado Federal institui – sob a presidência do Ministro Luis Felipe Salomão e relatoria dos professores Rosa Maria de Andrade Nery e Flávio Tartuce – Comissão de Juristas à qual foi atribuída a missão de atualizar e reformar o Código Civil brasileiro.

A Comissão tem dado aos seus trabalhos amplíssima divulgação. A presidência da Comissão oficiou inúmeras instituições dedicadas ao Direito em geral e ao Direito Civil em especial para que apresentassem suas sugestões de aprimoramento do Código Civil.

A Comissão vem organizando diversas audiências públicas para ouvir professores, advogados, juízes, defensores etc. Ademais, tornou pública a compilação dos pareceres das diversas subcomissões, de modo que qualquer interessado pode acessar o site do Senado Federal, ler os pareceres e apresentar considerações dirigidas aos membros da Comissão ou mesmo publicar artigos e ministrar aulas e palestras com sugestões de aprimoramento do texto atualmente vigente ou daqueles – ainda provisórios, insisto – constantes dos pareceres.

A comunidade jurídica tem a oportunidade e, permito-me dizer, o dever moral de apresentar suas contribuições para que tenhamos o melhor Código Civil possível.

Se é verdade que criticar as alterações depois de elas entraram em vigor é um direito, fazê-lo sem ter apresentado sugestões de aprimoramento enquanto isso é possível é despundonor.

Dito isso, na qualidade de membro-consultor da Comissão de Juristas, quero aproveitar o espaço gentilmente concedido pelo Migalhas para tratar dos chamados pactos sucessórios, designadamente para apresentar à comunidade jurídica minha opinião sobre qual seja o Livro mais adequado do Código Civil para constarem eventuais exceções à proibição dos pacta corvina e para apontar algumas objeções à proposta apresentada pela subcomissão quanto ao tema.

Um código de leis, qualquer um, é “uma ordem conjetural de problemas”, como precisamente definiu Miguel Reale em seu “O Direito como Experiência”, obra que reputo das mais importantes sobre teoria do Direito.

O encadeamento adequado das disposições normativas é, portanto, condição necessária para que um conjunto de artigos, incisos, parágrafos e alíneas forme um Código.

Durante o estágio de pós-doutoramento que o professor Flávio Tartuce e eu cursamos sob a supervisão do professor José Fernando Simão, tivemos, os três, ocasião de estudar com profundidade o tema dos pactos sucessórios e entendemos por bem apresentar ao Senador Rodrigo Pacheco proposta de alteração do Código Civil.

A proposta que apresentamos acrescentava seis parágrafos ao artigo 426 do Código Civil; foram elas:

Art. 426. (…).

§ 1º. Os cônjuges podem, por meio de pacto antenupcial, e os companheiros, por meio de escritura pública de união estável, renunciar reciprocamente à condição de herdeiro do outro cônjuge ou companheiro.

§ 2º. A renúncia pode ser condicionada às hipóteses de concorrência com descendentes ou com ascendentes.

§ 3º. A renúncia pode ser condicionada, ainda, à sobrevivência ou não de parentes sucessíveis de qualquer classe, bem como de outras pessoas, nos termos do artigo 1.829, não sendo necessário que a condição seja recíproca.

§ 4º. A renúncia não implicará perda do direito real de habitação previsto no artigo 1831, salvo expressa previsão dos cônjuges ou companheiros.

§ 5º. Quaisquer outras disposições sucessórias que não as previstas nos parágrafos anteriores, sejam unilaterais ou bilaterais, ocorrendo em pacto antenupcial, instrumento público ou particular firmados por cônjuges ou companheiros, são nulas.

§ 6º. A renúncia será ineficaz se no momento da morte do cônjuge ou companheiro o falecido não deixar parentes sucessíveis, segundo a ordem de vocação hereditária.

As justificativas – cuja íntegra omito pelo bem da brevidade – concentraram-se na possibilidade de os cônjuges e companheiros disporem de autonomia privada para planejarem sua sucessão, sem prejuízo da proteção ao importantíssimo direito real de habitação.

As exceções ao artigo 426 foram postas no próprio artigo, por meio do acréscimo de parágrafos, seguindo o que dispõe a Lei Complementar n. 95/98 em seu artigo 11, III, alínea c, verbis:

Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:

(omissis)

III – para a obtenção de ordem lógica:

(omissis)

c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida.

A subcomissão responsável pela revisão e reforma do Livro V do Código Civil (direito das sucessões) sugeriu que a disciplina dos pactos sucessórios constasse do Livro V da Parte Especial e criou regime jurídico muitíssimo inovador.

Apresento, a seguir, a proposta da subcomissão em itálico e, a cada dispositivo, minhas considerações.

Art. 1.790-A. Há sucessão contratual quando, por contrato, alguém renuncia à sucessão de pessoa viva ou dispõe sobre a sua própria sucessão.

A expressão sucessão contratual tem já um significado preciso que é o decorrente da transmissão da posição contratual de uma parte a algum terceiro. Por exemplo, a cessão da posição de locatário ao adquirente do ponto comercial.

O que a subcomissão pretendeu fazer foi criar um contrato que possa tratar amplamente da sucessão de pessoa viva, e não apenas da renúncia à qualidade de herdeiro.

Quando o dispositivo inclui a frase ou dispõe sobre a sua própria sucessão parece permitir que haja algo como um “contrato testamentário”, numa importação, a meu ver, imprópria do § 1941 do BGB (Código Civil alemão); imprópria na medida em que absolutamente estranha à tradição jurídica nacional e, ainda, incompatível com o regime jurídico da sucessão testamentária.

Para apontar apenas uma das inconveniências da sugestão, basta dizer que a existência de uma sucessão contratual (o melhor seria contrato de sucessão ou contrato sucessório), por coerência lógica, teria de implicar a revogação de testamento anterior incompatível com o contrato e a ineficácia de testamento posterior que o contrariasse.

§ 1º. É válida a doação, com eficácia submetida ao termo morte.

O dispositivo consagra algo que a melhor doutrina já admite e, portanto, é de se louvar. Não obstante, o seu local adequado é entre os dispositivos que formam o regime jurídico do contrato de doação, até porque a doação sob termo morte – ou à causa de morte – é contrato de doação, e não pacto sucessório.

§ 2º. A transmissão hereditária dos dados contidos em qualquer aplicação de internet, bem como das senhas e códigos de acesso, pode ser regulada em testamento ou, na omissão deste, nos contratos celebrados entre titulares e usuários e as respectivas plataformas.

Atualmente, salvo equívoco de minha parte, não há dúvidas de já ser permitido o que o dispositivo visa a permitir. Evidentemente que a explicitação é muito bem-vinda, mas me parece que deveria constar de parágrafo ao artigo 1.857 do Código Civil. Algo como:

Art. 1.857….

§ …º. Sem prejuízo do disposto nos contratos celebrados entre usuários e as plataformas, a transmissão hereditária dos dados contidos em qualquer aplicação de internet, bem como das senhas e códigos de acesso, pode ser regulada em testamento.

§ 3º. A reconstrução de voz e imagem após a morte se submete à mesma proteção dos direitos morais de autor.

O dispositivo é salutar, mas deveria constar da Parte Geral do Código Civil, designadamente entre os artigos que disciplinam os direitos da personalidade.

§ 4º. A sucessão em participações societárias, ou na administração da sociedade, pode ser regulada nos instrumentos societários das sociedades em geral, sem prejuízo à legítima dos herdeiros necessários.

Esse talvez seja um dos mais louváveis e importantes dispositivos sugeridos. Embora o inciso I do artigo 1.028 do Código Civil já contemple a possibilidade, a explicitação seria de todo benéfica.

Penso, no entanto, que deveria constar do Livro II da Parte Especial, e não no seu livro V

§ 5º. Na hipótese de que trata o parágrafo anterior, o valor da participação societária será avaliada com base em balanço patrimonial especialmente levantado na data da abertura da sucessão, avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma.

§ 6º Se o valor a que se refere o parágrafo anterior superar ao do quinhão atribuído em partilha ao sucessor contratual designado, este deverá repor ao monte o valor do excesso, em dinheiro.

§ 7º A sucessão contratual dos sócios ou administradores, quando expressamente regulada nos instrumentos societários ou pactos parassociais, se fará automaticamente após a abertura da sucessão, independentemente de autorização judicial.

§ 8º Em caso de morte de sócio ou administrador único, o Juiz poderá designar um administrador provisório até que se conclua a sucessão na sociedade.

Os parágrafos 5º a 8º são matéria puramente de direito societário e, portanto, devem ser tratadas no livro próprio, para o bem da unidade sistêmica do Código Civil.

§9º Os contratos sucessórios apenas são admitidos nos casos previstos neste Código, sendo nulos todos os demais, sem prejuízo do disposto no artigo 426.

Em sendo superadas as objeções que levantei, penso que a melhor redação para esse parágrafo seria: Os contratos sucessórios apenas são admitidos nos casos previstos neste Código, sendo nulos todos os demais, nos termos do disposto no artigo 426.

Não há risco de “prejuízo” se o dispositivo sugerido vai ao encontro do artigo 426.

Em síntese, a mim parece adequado que haja exceções ao artigo 426.

Defendo que, para a manutenção da ordem sistemática, fundamental a qualquer código, as exceções constem como parágrafos do artigo 426, e não no Livro V da Parte Especial.

Ademais, pelas razões – superficialmente – apontadas e outras que o tempo me impediu de expor, defendo que não seja positivada a categoria do “contrato sucessório”.

Concluo este brevíssimo texto enaltecendo o trabalho primoroso da Comissão de Jurista – não veja aqui o leitor um autoelogio porque funciono como mero consultor – e parabenizando especialmente os membros da subcomissão de direito das sucessões, todos juristas que considero meus professores.